quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O número e

Começaremos essa história com outra: a dos logaritmos. Quem da velha-guarda não se lembra das famosas tabelas de logaritmos? E das famigeradas réguas de cálculo? Coisas jurássicas para a geração atual!
Logaritmo: palavra de origem grega formada de lógos (razão, evolução, discurso) e arithmós (número). Logarithmo significa, literalmente, a evolução de um número. O símbolo log, contração de logarithm, é devido ao astrônomo Kepler.
Os logaritmos foram inventados por John Napier (1550-1617). Seu objetivo era obter uma forma menos trabalhosa de fazer cálculos. E, na época, uma multiplicação entre números grandes, por exemplo, era um verdadeiro sacrifício. Coisa de sábios.
Qual foi a idéia de Napier... ou Neper?
Neper foi um nome pelo qual ele também ficou conhecido, e como nos foi ensinado (logaritmos neperianos) – o que me fez lembrar de um amigo dos tempos de faculdade, um nordestino arretado, que sempre pronunciava “néparianos” e cujo apelido acabou ficando Népa. O mais interessante é que no ano seguinte a essa consagração surgiu outro nordestino com a mesma dificuldade. Não deu outra: Népa 2.

John Napier
Voltemos ao Neper original, que, mesmo sendo um rico escocês, fazia coisas mais interessantes do que se encharcar com whisky, e que era também uma pessoa muito ardilosa.
Conta-se que, desconfiado de que estava sendo roubado por um de seus empregados, ordenou-lhes que passassem a mão sobre um galo preto num quarto escuro, dizendo que o animal, posteriormente, identificaria o ladrão. Acontece que Neper, astuto matemático, havia passado fuligem no galo e, ao saírem os empregados do recinto, pediu-lhes que mostrassem as mãos, identificando o culpado – o único que estava com as mãos limpas...

Vamos tentar tornar palatável aos não-matemáticos outra idéia “ardilosa” de Neper para inventar os logaritmos, com um exemplo bem simples.

A idéia básica era obter o resultado de uma multiplicação através de uma operação mais fácil – a soma.

Sabemos que para calcular o produto de potências de mesma base somamos os expoentes, como no exemplo:

22 x 23 = 25

Vejamos, então, o procedimento básico através da tabela abaixo:


N
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
2n
2
4
8
16
32
64
128
256
512
1024

Na linha superior temos os expoentes e na inferior o resultado de 2 elevado ao respectivo expoente.

Então, para multiplicar 16 x 64, por exemplo, somamos os respectivos expoentes 4 e 6, obtendo 10. Verificamos em seguida qual o número correspondente ao 10, e chegamos ao resultado 1024.

A linha de cima é a dos logaritmos na base 2 e a de baixo, a dos respectivos antilogaritmos.

Fácil? Sim, mas as coisas não foram assim tão simples. Nunca são.

Neper usou como base 0,9999999 (uma coisa muito esquisita para os não-matemáticos e até para os sim-matemáticos). Os detalhes dessa escolha ficam para os mais interessados pesquisarem. Aqui espantaria boa parte de leitores.

O fato é que, com essa base, Neper construiu suas tábuas de logaritmos e publicou um tratado: Mirifici logarithmorum canonis descriptio (Descrição do maravilhoso cânone dos logaritmos).

Posteriormente, outro matemático, Henry Briggs (1561-1631), foi visitar Neper e sugeriu o uso da base 10. Pronto: ficou criado o logaritmo decimal, cujas tabelas (“dos Irmãos Maristas”) todos colegiais de antigamente tinham, com a notação log N significando logaritmo de N na base 10.

E, na seqüência, depois do logaritmo decimal, ensinavam-se logaritmos noutras bases, em especial o famoso ln N, significando logaritmo natural ou logaritmo na base e, ou, ainda, logaritmo neperiano (népariano, segundo os amigos nordestinos).
Com base nos conceitos de Neper, foram criadas as famosas réguas de cálculo, utilizadas até mais ou menos meados da década de 70. Hoje são peças de museu.

Régua de cálculo “Aristo”
E aqui começa a nossa breve história do intrigante número e.
Para apresentar o e, vamos supor uma situação bastante hipotética.
Imagine que um banco pague juros de 100% ao ano. Eu não falei que era uma situação hipotética? Mesmo assim, vamos fazer de conta que existe um banco com essa maravilhosa generosidade.
Após um ano, teríamos o montante de R$ 2,00 para cada R$ 1,00 aplicado.
E se, com uma generosidade inexplicável, os juros fossem creditados semestralmente, ao final de um ano teríamos R$ 2,25. Um sonho!
A expressão para esse cálculo é a seguinte:
(1 + 1/n)n = (1 + 1/2)2 = 2,25
Para o crédito ser trimestral, temos n = 4 e o resultado é 2,44141.
Vejamos alguns resultados para diversos valores de n na tabela abaixo.

n
(1 + 1/n)n
1
2
2
2,25
3
2,37037
4
2,44141
5
2,48832
10
2,59374
50
2,69159
100
2,70481
1.000
2,71692
10.000
2,71815
100.000
2,71827
1.000.000
2,71828
10.000.000
2,71828

A “loucura total” seria calcular quanto seria o resultado para o crédito instantâneo, ou seja, com n tendendo ao infinito.
Esse limite é um número irracional e transcendental chamado número e (número de Euler).
Um número é irracional quando não pode ser colocado na forma a/b com a e b inteiros. É transcendental quando não pode ser resultado de uma equação polinomial com coeficientes inteiros do tipo: axn + bxn-1 + ... + z = 0
Em termos matemáticos:
e = 2,71828182845904523536028747135266... E nunca termina.
Quem efetivamente calculou o número e foi Leonhard Euler, e dizem que a designação decorre da inicial de seu sobrenome, mas também existe a versão de que o e se deva à inicial de “exponencial”.
Esse número é a base dos logaritmos neperianos.
E se aquele banco generoso quisesse creditar juros instantâneos à sua aplicação de R$1,00, a 100% ao ano, você teria ao final de um ano o valor de:
R$ 2,71828182845904523536028747135266...
Ou, o que é mais provável, R$ 2,71, deixando aquela montanha de decimais ao banco. Afinal, esse banco merece!
Vamos, pois, ficar atentos à publicidade. Quem sabe não aparece um banco assim?
e=2,71828182845904523536028747135266249775724709369995957496696762772407663035354759451382178525166427...
Existem, entre outros, dois especialmente intrigantes: p e i.
p = 3,14159... Também transcendental.
i = Ö-1 porque i foi o símbolo adotado por Euler para a raiz quadrada de -1.
E olha só o que o Euler também conseguiu – uma correlação entre eles:
eiπ + 1= 0
Mas isso já é coisa para os efetivamente matemáticos...

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